A uma das mulheres que valeram a pena passar por este mundo

Quem te conhecia sabia que eras uma mulher muito à frente do teu tempo.
Foste talvez das primeiras mulheres portuguesas a frequentar a universidade, que debutou e bailou em festas na cidade do Porto. Fumavas, bebias champanhe,  falavas fluentemente francês e tocavas divinamente piano, conviveste com escritores, filósofos, músicos e artistas boémios e defendias com punhos e dentes a teoria que homens e mulheres deveriam ser tratados por igual.
Foste filha de uma mãe solteira que vivia numa aldeia no Gerês que tentou acima de tudo assegurar a melhor educação para as filhas para lhe proporcionar o melhor casamento possível. Afinal como dizia a tua avó e a tua mãe, "o casamento é o melhor investimento que uma mulher pode fazer".

No entanto a velha tradição portuguesa acabou de certo modo por apagar muitos dos teus ideais. Casaste-te com um dos maiores herdeiros da tua terra e apesar de teres sido incentivada a continuar a ser o génio que eras, o teu génio foi-se apagando. Um filho, dois filhos, dez filhos. Uma casa para ser governada. Gerir empregados, gerir tarefas domésticas. Um apoio incondicional na carreira política e empresarial do marido. Apoiaste quando a fortuna era muita, apoiaste quando boa parte dos negócios esvaneceu pelas nacionalizações pós 25 de Abril

Obrigaste todos os teus filhos a estudar, mesmo eles não tendo vontade. Tentaste fazer das filhas o tipo de mulher que eras mas nenhuma teve o génio pragmático como o teu. E acabaste por ver alguns dos netos a serem ainda mais evoluídos e sofisticados do que tu alguma vez foste. E disseste-me um dia que me invejavas pelas viagens que fazia, pelas minhas vivências, pelas experiências que outrora eram vetadas quando tinhas a minha idade.

Não foste de certo modo aquele tipo de avó fofinha que todos os meus amigos tinham. Não cozinhavas (o que nos valia era a Maria, a tua eterna cozinheira), não eras propriamente uma pessoa afável. Nunca pegaste nos netos ao colo e raramente pegaste nos filhos porque achavas uma verdadeira lamechice. E desta forma sempre te tratamos de forma respeituosa e cordial tal como os netos da rainha de Inglaterra devem fazer.
No entanto, não são todas as avós que conduzem um Mercedes dos anos 80, nem são todas as avós que dia sim-dia sim usavam Chanel nº5 e baton rouge e que coleccionavam revistas francesas de moda.

E esta semana, aos quase 96 anos desapareceste das nossas vidas... depois de uma enorme luta contra o tempo, fechaste os olhos para sempre enquanto te afagava o cabelo e te dizia baixinho que ia correr tudo bem. Que poderias morrer na cama de um hospital, mas que não estarias sozinha. Estavas acompanhada apenas por um dos teus oito filhos e por um dos teus vinte netos. Talvez uma das filhas que menos gostavas porque não tinha papas na língua para quando era necessário dizer umas boas verdades. E de certeza que não era a tua neta predilecta porque a neta que estava contigo não é de todo das netas mais meladas e fofinhas. É até a que mais convive com a morte e a que mais fica fascinada com ela.

Não houve choro, nem constrangimentos. Há semanas que desejava a tua morte porque aquela mulher que foste e que gosto de recordar como uma mulher muito à frente do seu tempo já não era a mesma pessoa que estava prostrada numa cama de hospital.

Mas há algo que me deixa triste: fecha-se um ciclo. O ciclo da família. Já não haverá mais convívios na tua casa contigo a resmungar por causa do barulho ou do excesso de comida, já não há mais festas de aniversário tuas. Nós, família, vamos-nos afastar . 

Até um dia ´vó.  Até um dia.



Comentários

Mensagens populares