Sobre o poder feminino (I) História da avó Katarzyna

E esta semana que se comemora o centenário do nascimento da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, mulher sofisticada, muito à frente do seu tempo, fez-me invocar na memória, mulheres ilustres que fazem parte da minha infância, da minha vida. Mulheres anónimas para maior parte das pessoas. Mas mulheres marcáveis.

A minha avó paterna, nasceu na Polónia em 1930 no seio de uma família judia. Com a invasão nazi, toda a sua família desapareceu no mundo. Chegou sozinha e desamparada a Portugal em 1940, juntamente com muitos desconhecidos, foi adoptada por uma família muito pobre da região de S. Pedro do Sul a troco de uns míseros escudos dados pela Segurança Social para que tomassem conta daquela criança que não falava português e que provavelmente seria uma orfã.
A pobreza obrigou-a a trabalhar na companhia de minas de volfrâmio, companhia essa que era alemã e que lhe pagavam para trazer cestos desse minério à cabeça por vários km até chegar à estrada principal. Volfrâmio que seria para ser usado na construção de armas de guerra. Armas de guerra para matar muita da sua gente.
Foi obrigada a ser baptizada e a mudar para um nome mais português. Passou a chamar-se não Catarina, como deveria ser, mas sim Custódia. Casou com 16 anos com um português, teve 6 filhos, 4 deles não chegaram aos 2 anos de idade. Mandou a filha pequena para a casa de um irmão adoptivo para ter direito a uma boa educação. O padre da aldeia levou o seu filho para um seminário porque era inteligente demais para ficar a trabalhar no campo ou ser enviado para França. Mesmo sem filhos em casa, criou os sobrinhos do marido que ainda eram mais pobres que ela. 

A filha cresceu, recusou fazer o liceu, casou, mudou-se para Lisboa, divorciou, emigrou para França e só a via no Verão. O filho não chegou a ser padre. Estudou Economia, tornou-se militar, casou, teve filhos, tornou-se investigador crimal, atleta olímpico, braço direito e assessor de políticos, membro do parlamento até ao dia da sua morte.

Nunca ensinou polaco ou iidiche aos filhos por estar proibida pelo padre da freguesia e por medo da PIDE. Com os netos, já depois do 25 de Abril, gostava de falar nessas línguas, tendo os netos aprendido de ouvido tais idiomas tão estranhos. 

A minha avó paterna, orfã, refugiada judia, que sempre conviveu com a miséria e a pobreza, morreu numa madrugada de Agosto de 1997 sem nunca saber o que se passou com os seus familiares e amigos na Polónia. 

Quando em 2011 fui pela primeira vez à cidade onde ela nasceu, tentei pelos meus próprios meios chegar a alguma informação sobre o paradeiro deles. Soube que a sua avó (minha trisavó) faleceu em 1940 e que estava enterrada lá. Soube que um irmão dela, com 14 anos, morreu no gueto de Cracóvia, o que quer dizer que muito provavelmente os seus pais faleceram lá ou em algum campo de concentração. 
Para desencantar tais tipos de informações, agradeci a ela o facto de perceber polaco de ouvido. Isso foi óptimo para aprender falar fluentemente já na minha  vida pelo leste, o checo, o russo, o polaco e o eslovaco.
E o facto de dominar tais línguas, abriu portas para que contactasse com empresas de cosméticos nesses países, empresas onde trabalhava no laboratório a testar esses produtos e a redigir relatórios sobre eles. 

A minha avó não foi uma heroína. Foi uma vítima da Guerra. Uma sobrevivente. 
A minha avó, com uma vida difícil mas mesmo assim extraordinária, foi pilar fundamental para a família que formou. Graças ao seu testemunho de vida, aprendemos todos que de uma maneira ou de outra, coisas boas acontecem no meio de tanta desgraça. Que não há pobreza sem riqueza, nem riqueza sem pobreza. Aprendemos também a dar um valor à vida, muito diferente daquelas pessoas que não passaram dificuldades. Que lutar pela felicidade é fundamental e que para as pessoas mais fortes, é que Deus concede os maiores desafios. שָׁלוֹם עֲלֵיכֶם


Três dos suas netas (Catarina, Cátia e  Carina estiveram presentes em 2013 no memórial das vítimas do Holocausto, juntamente com outros netos de sobreviventes espalhados pelo mundo. Israel, Jerusalém


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